segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

ANTES QUE O CARNAVAL CHEGUE...

Se a sensação de tempo passado é cada vez mais veloz pra todos, se o ontem parece fugir pra longe muito rápido e o hoje consegue ser cada vez menos suficiente pra abrigar um dia, então todos vão entender perfeitamente meu atraso e mesmo assim aceitar meus votos de BUON NATALE E FELICE ANNO NUOVO em pleno mês de janeiro. Afinal todos já tiveram tempo de elevar seus agradecimentos e arrependimentos, renovar pedidos e esperanças, e buscar novas bençãos do Bambino Gesù para um bom 2013. Todos já tiveram tempo de dar e receber algum presentinho do Babbo Natale. E se ele falhou, sendo você de origem italiana, ainda teve a chance de receber algo da querida BEFANA! Pois resumindo, é dela que quero falar, antes que o carnaval chegue!

Pra quem não conhece, segundo a tradição italiana, a Befana é uma velha senhora que visita as crianças no dia 6 de janeiro, durante a madrugada, para encher as meias por elas penduradas nas janelas, portas ou lareiras. Se as crianças foram bem comportadas, as meias serão recheadas com bolachinhas, balas e chocolates. Caso contrário, infelizmente só encontrarão pedaços de carvão.


Frequentemente a Befana é descrita como uma velha que voa sentada numa vassoura, quase como uma bruxa. A diferença é que ela é sorridente e pode trazer presentes.  



A origem deste personagem tem muitas versões. Provavelmente está ligada às tradições pagãs que comemoravam o fim do ano solar e o início do ano lunar. Por isso, o aspecto de uma pessoa velhinha, representando o ano velho. Sob esta mesma ótica, a entrega de presentes assume o significado dos votos de prosperidade para o ano novo.


Mas de acordo com uma versão 'cristanizada', os Reis Magos, perdidos a caminho de Belém, pararam para pedir informações a uma velha senhora. Apesar deles insistirem muito para que ela os acompanhasse para visitar o Menino Jesus, ela não aceitou. Arrependida, preparou uma cesta de doces, saiu e tentou encontrá-los. Sem conseguir, começou a parar em cada casa que achava pelo caminho, distribuindo os doces para as crianças, na esperança que alguma delas fosse o pequeno Jesus. Desde então, ela gira pelo mundo, entregando presentes, para ser perdoada. 

Bolachinhas de diversos formatos, cobertas por confeitos coloridos, ganham o nome de 'befana' e garantem que essa tradição se repita a cada geração, com crianças esperando pelos seus docinhos a cada dia 6 de janeiro. Isso fez parte da minha infância e das minhas filhas. Ah... mas até que uma nova geração peça, e daí chegue a minha vez de fazer os biscoitinhos, nós ainda continuamos recebendo as 'befanas da nonna'. E entre as lembranças trazidas por esse sabor simples, não conseguimos esquecer de alguns fatos curiosos que passavam pela nossa infantil imaginação. Como era possível achar, por exemplo, que a bolacha no formato de árvore de Natal era mais gostosa que a outra em formato de estrela? Ou então, por que ninguém queria as bolachas em forma de meia? Ah, talvez a gente acreditasse que elas podiam ter cheiro de 'chulé'! E como era bom comer sempre fazendo a volta toda, deixando o meio, com mais confeitos, pra última mordida... Só criança pode explicar!


Mas uma boa receita de massa de torta doce, com confeitos de bolinhas ou granulados coloridos, e dois ou três modelos de cortadores de bolachas, vão garantir que a Befana passe na sua casa no ano que vem, sem sentir vergonha! Bem, a não ser que você não se comporte direitinho em 2013 e daí acabe encontrando só pedaços de carvão na sua meia...

Para as befanas mais tradicionais, pode-se usar a receita da massa da 'Torta de amêndoas e chocolate' do meu nonno, já publicada aqui. Mas aí vai uma outra opção de receita...

BISCOITINHOS DA BEFANA (versão com gostinho de coco)

500 g de margarina tradicional (não usar as versões lights ou mistas)
1 colher (sopa) de gordura vegetal
500 g de farinha de trigo
200 g de maisena
100 ml de leite de coco
açúcar a gosto
(se necessário, adicionar um pouco mais de farinha)

Colocar os ingredientes em uma tigela e sovar bastante até que a massa fique bem lisa. Abra a massa com um rolo, em superfície polvilhada com farinha de trigo, deixando com uma altura de no máximo meio centímetro. Corte com forminhas apropriadas para biscoitos. Untar a assadeira com manteiga e levar os biscoitinhos ao forno médio. Antes de dourarem, retire, pincele com gema de ovo, salpique os confeitos coloridos e volte ao forno até pegarem um tom dourado .



AGORA, SE EU ME AUSENTAR MAIS DO QUE PRETENDO,
JÁ POSSO DESEJAR BOM CARNAVAL!
DE 03 DE FEVEREIRO A 03 DE MARÇO, PRA QUEM QUISER RASGAR A FANTASIA EM VIAREGGIO, NA TOSCANA!
E A PARTIR DO PRÓXIMO DIA 09, DURANTE SÓ QUATRO DIAS, PRA QUEM FOR SE FANTASIAR POR AQUI MESMO.


terça-feira, 23 de outubro de 2012

CORES QUE TÊM SABOR E AROMA.

Milhões de vezes, milhares de pessoas já tentaram descrever, detalhando cada nuance, cada recanto, a cidade onde nasceram, ou o lugar onde se apaixonaram pela primeira vez, ou aquele pedacinho especial do mundo onde foram especialmente felizes, uma ou muitas vezes, sozinhos ou com outros, não importa. Tentaram, e de repente até conseguiram, transportar pessoas para aquela paisagem que só existia no seu imaginário. Criaram um mundo tão rico em detalhes e cores que podia ser visitado apenas fechando os olhos, de qualquer lugar,  a qualquer hora, a todo instante.

A despedida do sol tem o tom alaranjado da abóbora madura. Não seria então cor de abóbora? Afinal não é amarela a laranja? Mas mesmo assim todos entendem perfeitamente o tom perfeito de um por do sol especialmente inesquecível. 

Os campos têm todos os tons que podem existir entre o amarelo e o ocre, passando pelo verde fresco das oliveiras ou pelo verde morno dos ciprestes, embora o verde não faça parte dessa mesma escala de cores e, que por ser cor, não tenha temperatura alguma.

O céu é de um azul compacto, intenso, limpo a ponto de ser um convite a um mergulho. Uma mistura de piscina com eternidade. Mas tem ao mesmo tempo a transparência capaz de permitir o traçado branco que denuncia o intruso avião que ousou passar por ali.

No alto das colinas, como curvas de um corpo mais roliço, às vezes uma pincelada cinza, às vezes um borrão de tinta ocre, registram que uma construção de centenas de anos ainda abriga pessoas com alguns anos de vida, que mesmo sendo vivas e em movimento, são capazes de preservar aquele cenário. Será que só para nosso deleite? E o que é ainda mais reconfortante: nunca iremos errar o caminho. Traços firmes, do chão em direção ao céu, naquele tal tom de verde morno, sinaliza como chegar até o afago de quem habita estas paisagens. Ciprestes nos levam até lá.

E então eu pergunto: com que cores se pinta a Toscana? Cores da alma de quem não se contenta em ver, mas quer também beber, comer e cheirar essas cores. Cores de quem é capaz de visitar e revisitar os mesmos lugares e mesmo assim ter a certeza de que nunca será suficiente para decorar e guardar na memória todos os detalhes. Cores que alimentam o espírito, quando ele tem fome. Mas que são as mesmas cores capazes de embalar a alma quando está plenamente satisfeita.


E foi dessas cores que mais uma vez me nutri, num percurso novo, que merece ser refeito mais vezes. Pouco mais de 300 quilômetros pelas estradas secundárias, saindo de Lucca para alcançar o sul da Toscana, na região da Maremma
Menos exploradas e, talvez por isso, especialmente tímidas, me deixei seduzir pelas pequenas Pitigliano, Sorano e Sovana, a menor de todas. Essas são as três mínimas maravilhosas razões para percorrer, mesmo que só por alguns dias, todas essas cores. Afinal, o resultado será o colorido novo da alma, com aquele tom forte e quente de 'toscanidade'.  E esse fica!




quarta-feira, 27 de junho de 2012

ROMA DE WOODY ALLEN. ROMA DE LUA DE MEL.

Estive na pré-estreia do novo filme de Woody Allen - Para Roma com Amor (aqui, a opção do trailler em italiano) - e as associações foram inevitáveis! Acabei dando uma escapadinha para janeiro de 1980! Viagem de lua de mel...

Entre as histórias acumuladas até aquele ano, já existiam algumas referências que faziam de Roma uma cidade minimamente conhecida e idealizada na minha imaginação. Antes de mais nada, a Capital da Itália. A cidade que curiosamente abriga outra cidade: a Cidade do Vaticano. A cidade que dominou a Europa com seu Império Romano. A cidade que é dona de riquezas de arte e história. A Cidade Eterna. A Cidade Aberta de Rossellini e também a Roma de Fellini. Tanto faz. Afinal foi justamente lá que pisei em solo italiano pela primeira vez! 

Antes mesmo de descer do ônibus, chegando do aeroporto, o primeiro dos muitos ícones do país dos meus pais surgiu inesperadamente na minha frente. O Coliseu. Enorme. Majestoso em suas ruínas. Prova de sobrevivência de uma cultura que conheci nas histórias da minha infância. Como disse uma grande amiga, também filha de imigrantes, porém portugueses, "mesmo antes de estar lá eu já conhecia os cheiros e sabores daquela terra, e isso era muito forte em mim; eram os cheiros e sabores da minha casa!". Emoção total! 

E sendo janeiro - e sendo inverno -, caminhando pela primeira vez pelas ruas de Roma, fui surpreendida com mais uma história que se concretizava ali, ao alcance das minhas mãos e do meu paladar. Um ambulante, um fogareiro e mondine! Castanhas assadas na brasa, que eu conhecia tão bem de histórias dos muitos invernos austeros da infância e juventude dos meus pais. Assadas nas lareiras e fogareiros domésticos, um punhado delas dentro dos bolsos do casaco era, naquele tempo, o melhor modo de aquecer as mãos e encarar, a pé ou de bicicleta, o caminho muito frio até a escola. Poder sentir o que eles sentiram foi uma emoção inesquecível. Tão forte que quase me esqueci de comê-las e dar também sabor a essa experiência, agora lembrança também minha.

E se a Roma de minha lua de mel tem calor e gosto de castanha assada, a verdadeira Roma tem uma receita que sempre frenquenta as nossas mesas (mesmo sendo mesas toscanas!): saltimbocca* alla romana. Simples, fácil e muito saborosa. Façam essa carne. Mas aproveitem o ameno inverno de nossas terras tropicais e provem também as mondine.

Ah! Já ia me esquecendo... Gostei do filme. Um história leve, que mistura romance, críticas e humor. Bem ao estilo Woody Allen. E com um cenário 'meravigloso'!


Mondine

A receita em si é muito simples, mas preparar mondine por aqui tem algumas complicações. Quando temos um pouco de frio, não temos castanhas. O jeito é guardar na geladeira um pacote da época do Natal e torcer pra que elas durem até a temperatura dar a primeira esfriadinha.
Você vai usar uma frigideira bem grande, daquelas baratinhas, porque vai precisar fazer vários furos, com cerca de 0,5 cm, por todo o fundo. É aconselhável também que a frigideira tenha um cabo mais comprido que o normal, para poder segurá-la sobre o fogo o tempo todo, sem se queimar. Além disso, é necessário uma lareira ou uma churrasqueira ou uma fogueira...
Se tudo isso estiver OK, é só fazer um pequeno talho em cada uma das castanhas para que elas não explodam com o calor. Coloque-as na frigideira, dê uma boa esborrifada com vinho tinto e mantenha sobre o fogo, sacudindo sempre a panela, como se fosse virar uma panqueca. Enquanto assam, pode esborrifar com vinho mais uma ou duas vezes. Quando ficarem tostadas, despeje-as sobre um saco de estopa (bem ao estilo dos camponeses italianos) e esfregue bem para ajudar a soltar a casca. Pronto! Pra acompanhar, só falta um bom copo de vinho e um bom papo, aproveitando o calor das brasas. 

Saltimbocca alla romana (para 4 pessoas)

12 pequenos escalopes finos de filé mignon (lá eles usam a vitela)
200 g de presunto crú italiano (a versão mais 'light' da minha casa é feita com peito de peru defumado)
folhas de sálvia fresca
sal, pimenta, farinha de trigo
azeite de oliva e manteiga (não use margarina)

Procure deixar os escalopes de tamanhos iguais, finos e não muito grandes. Tempere com pouco sal, principalmente se usar presunto crú, e pimenta. Coloque uma ou duas folhas de sálvia no centro e cubra com uma fatia de presunto crú, prendendo-a transpassando um palito (em casa, não costumamos colocar mais uma folha de sálvia por cima do presunto). Passe levemente pela farinha de trigo, dos dois lados. Cozinhe numa frigideira com um fundo 'generoso' de manteiga e azeite (meio a meio) quentes, colocando os escalopes lado a lado, em fogo moderado, evitando queimar a manteiga. Deixe ficar um pouco mais de tempo do lado que não tem o presunto. Repita até acabar, acrescentado a cada porção de escapoles um pouco mais de manteiga.  Esse 'fundo' que se forma na panela deve ser despejado sobre os escalopes. 
Alguns receitas, orientam a voltar os escalopes para a panela, juntar um pouco de vinho seco e esperar evaporar. Provei mas não aprovei. O toque de vinho rouba um pouco a cena do delicioso sabor da sálvia com o presunto. 
Detalhe: depois de comer os saltimboccas,  limpar esse molho da travessa com pão, é uma delícia bastante disputada, quando não temos visitas em casa!

Sugestões de acompanhamentos: batatinhas assadas no forno ou purê de batatas ou risoto com zafferano (açafrão italiano).

* saltimbocca é uma corruptela que quer dizer 'salta na boca'

Bem, pra completar, entre saltimbocca e castanhas, 
a lua de mel dessa história continua dando muito certo!

quarta-feira, 13 de junho de 2012

O QUE É TER NONNO!

Avós, pra mim, sempre foram nonno e nonna. Aliás sempre me soou estranho quando precisava me referir a eles como vovô e vovó, avô e avó. Um nonno e uma nonna, por parte de pai, eu só conheci por histórias e fotos, que naquela época eram poucas e só em branco e preto. Nas minhas referências de criança, eles moravam muito, muito longe. Num lugar que só podia ser alcançado por mar, numa viagem de quase duas semanas, ou de avião, mas com pelo menos duas escalas. Esses eram 'i nonni' que moravam em Lucca e nunca vieram para cá. 

Mas a convivência estreita que tive com a nonna e o nonno maternos preencheram minha infância com uma certa - e inesquecível - rotina! Se fecho os olhos, uma sequência sem fim de deliciosos momentos, repletos de aromas, sotaques, melodias e sabores me vêm à lembrança. E nessa 'gaveta' das minhas memórias, o nonno, sem dúvida, ocupa mais espaço do que a nonna. Um nonno que tinha uma paciência sem fim! Um nonno que fazia coisas simples que todo avô deve fazer, como levar os netinhos pra brincar na praça, vez ou outra contar uma história, dar papel e lápis de cor pra desenhar, comprar um doce, ir a uma matinê... Mas com ele, nunca foi assim tão básico, tão comum! 

Meu nonno (por favor, leiam esse 'meu' com total sentimento de posse, como se ele nunca tivesse tido outros netos!) pintava telas à óleo. Apenas um de seus muitos 'hobbies'.  Ele tinha um cavalete - que pra mim parecia muiiiiito alto! - e uma maleta repleta de pincéis e tubos de tintas de muitas e muitas cores. Ali sempre tinha também alguns trapos sujos de pinceladas de tinta, onde eu tentava descobrir formas com a minha imaginação. E o cheiro dessas tintas e pincéis? Ah! Está aqui, muito vivo, no cantinho da minha memória. 

Ele tinha vários livros com obras dos grandes pintores do renascimento. E, com toda sua generosidade, me deixava folhear aqueles pesados volumes, com cenas que às vezes me assustavam, com pessoas sofrendo, trovões e serpentes, e às vezes me enterneciam, com Jesus rodeado por crianças, com jardins repletos de flores.

Meu nonno gostava de música. E foi através de um móvel grande e escuro, com discos pretos e grossos, de 78 rotações, que ele me apresentou a Puccini e Verdi, ou a Achille Togliani, Alberto Rabagliati, Claudio Villa, Beniamino Gigli, Carlo Butti, que davam voz e melodia às suas lembranças da Itália (e agora minhas lembranças de infância). 

Lembro bem das nossas tardes, aproveitando a luz da varanda, 'dividindo' tintas e pincéis, pintando (eu, mesmo sem qualquer habilidade, me achava um Da Vinci!) e escutando música italiana. Lembro da sua paciência ao ter sua pintura interrompida para atender meu pedido e colocar outro disco naquela vitrola que eu não alcançava, nem mesmo ficando na ponta dos pés! 

Meu nonno se chamava Giuseppe (José) e como o 'bom José' também 'mandava muito bem' criando algumas peças em madeira. Lembro bem do pequeno quarto na área de serviço, repleto de ferramentas. E já que minha memória fez esse caminho, passando pelo tanque, lembrei de seu costume de todas as manhãs: frio ou calor, era ali, sob a torneira de água fria, que ele enfiava a cabeça pra despertar para mais um 'buongiorno'! E nisso, confesso, não herdei nada: adoro água quente!

Meu nonno me levava para brincar na praça, nas festas juninas do clube, nas sessões de Tom & Jerry, no Cine Jardim, quase todos os domingos de manhã, me empurrava bem alto no balanço e obviamente me contava histórias. Poderiam ter sido muitas histórias, mas eu explorava sua paciência celestial ao máximo! Quase todas as semanas, antes da frequência obrigatória da escola, eu dormia algumas noites na casa dele. Honestamente? Mais do que na casa dele. Eu desalojava minha nonna da cama deles, me deitava no lugar dela, só para poder dormir escutando ele contar incansáveis inúmeras vezes a mesma história italiana para crianças: "nonno, conta de novo a história do Buettino?". E ele contava!

Meu nonno era habilidoso também na cozinha, onde testava e adaptava receitas do Artusi, como os crostini (hoje generalizados como bruschettas) di fegatini toscani, a torta de chocolate - bem forte - com as amêndoas amargas, tiradas do caroço do pêssego, o frango que ele mesmo desossava com perfeição e recheava.


Mais um sabor que até hoje me leva diretamente ao meu nonno: morangos com chantilly.   Qualquer saída até o centro da cidade incluía uma parada no restaurante da família, gerenciado por ele. Recebida com honras pelos garçons, em horário de folga no meio da tarde, eu, muito magrela, era servida com uma farta porção de morangos com chantilly! Essa combinação era uma sobremesa especial naqueles tempos, em que os morangos obedeciam a sazonalidade da natureza, duravam muito pouco e o seu aparecimento estava diretamente associado à época do meu aniversário, no mês de julho.

Meu nonno cumpria comigo um outro importante ritual: a montagem do presépio. Lógico que, com um nonno tão habilidoso, o nosso presépio tinha alguns encantos especiais. O móvel, chamado de buffet, na sala de jantar, ganhava uma tela de fundo, em toda sua extensão, com cenas e paisagens de Jerusalém pintadas por ele. Algumas montanhas eram 'construídas' com papel que imitava pedra. Um lago, feito por ele, ganhava água de verdade para os patinhos de mentira se instalarem. E os pequenos personagens de gesso podiam cruzar esse lago passando por uma ponte de madeira, também construída por ele, e seguir por estreitos caminhos feitos com serragem, até alcançar o pequeno estábulo com teto de palha e manjedoura. Também obra dele! E então chegava um momento de muita concentração e cuidado: ele acompanhava a minha colocação de todos os personagens nesse fantástico cenário, mas que deviam ficar concentrados no lado oposto do estábulo. Depois disso, o encantamento do 'gran finale': ele me ajudava, em pé sobre uma cadeira, a alcançar um fio de nylon, estendido no alto da paisagem, que recebia a dourada estrela que guiaria todos os personagens! E até o dia de Reis, eu era a importante guardiã dessa obra, encarregada de movimentar, pouco a pouco, pastores, camponeses, animais e Reis Magos para que todos chegassem até a manjedoura no dia de Natal, quando eu colocava ali também o Menino Jesus.


Meu nonno não está mais aqui, mas ainda tenho o mesmo São José acompanhado da mesma Maria e Reis Magos do nosso presépio. Meu nonno não está mais aqui, mas garanto que até a nossa despedida não foi comum. Ele já estava doente, hospitalizado no interior de São Paulo, e o destino quis que eu estivesse no Rio Grande do Sul exatamente no dia em que ele faleceu. Por isso, nosso arrivederci não aconteceu entre hospitais, velórios ou enterros. Esse momento triste também tinha que ser transformado numa lembrança especial! Nosso arrivederci foi no voo que imediatamente tomei para São Paulo, com o dia amanhecendo, sobre nuvens fofas e brancas, atravessando um céu muito azul, do jeitinho que ele teria pintado. E onde sei que ele está, olhando por nós (e especialmente por mim)!


Bem, apesar deste post ter ficado mais longo, acho que mesmo assim devo publicar aqui mais uma das receitas do meu nonno. E pra ser algo especial, escolhi a única que ainda temos anotada com a caligrafia dele.


Torta de amêndoas e chocolate (*)


150 g de amêndoas (se quiser, prove fazer juntando amêndoas do caroço do pêssego)
150 g de açúcar
100 g de chocolate amargo 
60 g de fécula de batata
50 g de manteiga (não usar margarina)
1 e 1/2  xícara (chá) de leite (300 ml)
4 ovos
essência de baunilha


Se optar pelas amêndoas do pêssego, que dão um toque mais amargo, elas devem ser retiradas de dentro do caroço e deixadas secar muito bem ao sol ou no forno, antes de usar.
Devem ser trituradas até ficarem bem finas, junto com 1/3 do açúcar.
Numa panela, derreter a manteiga, juntar a farinha de batata e ir incorporando o leite pouco a pouco. Quando tomar consistência, mexendo sempre, juntar o chocolate ralado e o restante do açúcar. Quando estes estiverem incorporados, juntar as amêndoas trituradas, mexendo continuamente.  Quando o creme estiver bem uniforme, juntar a essência de baunilha (ver a dica no final do post 'Ganhando fama por gerações"). Deixe esfriar para juntar os ovos batidos à parte.


Preparar a massa da torta com 250 g de farinha de trigo, 125 g de manteiga em temperatura ambiente, cortada em pedaços pequenos, 110 g de açúcar, 1 ovo inteiro e 1 gema, 1 colher (café) de raspas de casca de  laranja. Misturar tudo, trabalhando apenas o necessário para a massa ficar bem homogênea. Envolver a bola de massa em filme plástico e colocar na geladeira por meia hora. Depois, abrir a massa formando um disco com no máximo 0,5 cm de espessura. Untar uma forma redonda com fundo removível e forrar o fundo e lateral com a massa. 


Despejar o creme anteriormente preparado e levar ao forno médio até que a borda da massa esteja dourada. 


(*) Curiosidade: acabo de descobrir que o recheio desta torta é exatamente a receita nº 646 do livro de Pellegrino Artusi, fonte inspiradora das experiências culinárias do meu nonno. Tão aprovada por ele, que até a copiou em seu caderno, esta receita está curiosamente apresentada por Artusi como "para quem gosta de chocolate, este, se não me engano, é um bolo excelente"! Pois é! Acho que Artusi não se enganou!




segunda-feira, 16 de abril de 2012

MURALHAS, BICICLETAS E MUITO APETITE!


Preparativos antes de ir para a alameda sobre a muralha.
Aqui estamos sobre a muralha de Lucca.












A cidade de Lucca, na Toscana, é capaz de provocar algumas transformações mágicas em nossos sentidos e até na concepção que se tem de algumas coisas. Lá, uma muralha medieval deixa de ser apenas o símbolo de uma fortaleza protegida, bicicletas nunca mais representarão apenas um meio de transporte e apetite jamais poderá estar simplesmente associado à sensação de ter ou não fome! Essas são apenas três das coisas que certamente ganharão nova dimensão depois de passar por Lucca.

Lucca exige que você pegue uma bicicleta (há alternativas para quem não se identifica sobre apenas duas rodas) e pedale sobre suas muralhas. Isso mesmo! A muralha é um círculo completo, de 4 quilômetros, em torno da cidade medieval. Larga de tal modo (sua base tem 30 metros de largura) que se transforma numa alameda,  sombreada por plátanos seculares em praticamente toda a sua extensão.

Pra completar a experiência, nossa sugestão: um picnic! Evidentemente sobre a muralha, com pães, embutidos, queijos e vinhos locais! Depois disso, você vai entender direitinho qual é a diferença entre apetite e fome! 

Certamente, quem já passou por essa experiência guardou na memória o frescor da brisa no rosto enquanto andava de bicicleta, o som da cidade, que 12 metros abaixo, vive há séculos protegida pela muralha, o aroma do pão fresco com presunto cru e o sabor do parmesão e do vinho!

Quer provar tudo isso? Uma dica imperdível: no centro histórico, antes de alugar as bicicletas, passe no Alimentari La Grotta, na Via dell'Anfiteatro, 2. É uma loucura de apelos irresistíveis ao paladar, ao olfato e, sim, à visão também, afinal não 'comemos com os olhos'? Os sanduíches do nosso picnic, variando entre focaccia, ciabata e panino, eram recheados de presunto cru com rúcula ou salame e mussarela (acho horrível escrever com ç) de búfala ou mortadela com um fio de azeite extravirgem! Pra acompanhar, tínhamos um vinho especial, com rótulo da família, mas, sinceramente? Um Fubbiano/Colline Lucchesi é ainda melhor. Detalhe: se o grupo for numeroso e o pacote ficar pesado pra carregar na bicicleta, conversando com o Maurizio, dá pra encomendar e eles entregam numa das mesinhas 'su le mura' (sobre a muralha). Ah! Toalha, copos, sacarrolha e boa companhia ficam por sua conta...


Mesmo sem muralhas medievais e plátanos seculares, bicicletas e muito apetite a gente encontra também por aqui. Por isso se alguém se animar em curtir um picnic, aí vai uma receita extraída de uma edição da revista La Cucina Italiana, cuja matéria especial é justamente sobre picnic! 

Sanduíches de queijo de cabra e atum defumado

Para 4 sanduíches:
8 fatias de pão de forma (sugestão: Grão Sabor, Integral, Wickbold)
8 fatias finas de atum defumado
150 g de queijo de cabra
10 g de ervas aromáticas frescas, de sua preferência (tomilho, salsinha, cebolinha etc.)
85 ml de azeite de oliva extravirgem
sal e pimenta do reino branca

Temperar o queijo de cabra com um pouco de azeite, sal, pimenta e as ervas finamente picadas. Pincelar as fatias de pão com um pouco de azeite e deixar tostar no forno a 200º por um ou dois minutos. Espalmar o queijo sobre 4 fatias de pão e colocar por cima as fatias de atum. Fechar os sanduíches com as outras fatias pão.

Além da receita traduzida, você pode o filminho. Embora ali o 'chef ' use o pão sem tostar, ele sugere outras situações para esse mesmo sanduíche...


Bom picnic!

GANHANDO FAMA POR GERAÇÕES!

Bolo simples! Assim eram conhecidos os bolos fáceis e rápidos de preparar. Poucos ingredientes - farinha de trigo, açúcar, fermento, ovos e leite. Coisas básicas e sempre encontradas em qualquer despensa, incluindo a da vizinha, que sempre estava ali pra socorrer na falta de qualquer um deles. Será que as pessoas ainda falam "por favor, você tem uma xícara de açúcar pra me emprestar? assim que comprar, devolvo"? Pra incrementar e variar a receita, suco de uma ou duas laranjas, ou raspas de limão, ou um pouco de essência de baunilha (*). E pronto!

Hoje acho que bolo simples está relacionado apenas ao ato de comprar, ou seja, é muito mais simples comprar! Industrializado ou assado nos fornos dos supermercados e padarias, estocados em embalagens herméticas com grandes prazos de validade ou 'pegando moscas' nos balcões. Simples!

A diferença de um simples para o outro? Ah! O primeiro tinha sempre crianças ao redor da mãe ou da nonna, se lambuzando, melecando tudo, pra tentar ajudar, aprender e brincar. Uma farra, que às vezes podia até acabar em bronca! Mas quem se importava? Além disso, essa 'versão' enchia a casa com o delicioso aroma do bolo simples assando e avisando que a hora do lanche estava chegando!

E foi nesse clima, em que merenda era festa, que muitas vezes fiz e muitas vezes acompanhei minha primeira filhota, ainda pequena, preparando e se dizendo "dona da receita" de um dos famosos bolos simples da nonna: a "Torta Mantovana". Ai de quem pedisse a receita! Segundo ela, uma indesculpável ousadia! Afinal, ela havia decidido tratar essa receita como uma tradição de família! Por isso, se algum dia ela permitir, talvez vocês encontrem a tal receita por aqui. Por ora, apenas pra ilustrar essa lembrança de casa cheirando a bolo simples, aí vai a receita do Bolo Mármore da nonna.

Bolo Mármore
4 ovos
150 g de manteiga sem sal
2 xícaras (chá) de açúcar
3 xícaras (chá) de farinha de trigo
1 colher (sopa) bem cheia de fermento em pó
1 xícara (chá) de leite
3 colheres (sopa) de chocolate em pó (jamais usamos achocolatados no preparo dos doces - fica muito doce!)


Bater as claras em neve e separar. Bater as gemas, adicionar o açúcar e bater até clarear. Juntar as poucos, batendo sempre, a manteiga derretida. Juntar a farinha de trigo e o leite e bater apenas o suficiente para ficar homogêneo. Juntar as claras em neve e o fermento e misturar delicadamente. 
Separar 1/3 da massa e acrescentar com o chocolate em pó. 
Untar uma forma redonda, com buraco no meio. Polvilhar com farinha de trigo e colocar metade da massa branca no fundo. Por cima, a massa com chocolate e cobrir com o restante da massa branca.
Assar em forno pré-aquecido a 180º, durante cerca de 35 minutos.


Pronto! Agora a casa está perfumada de bolo simples!


(*) Dica para viagem: passando em qualquer supermercado na Itália, aproveite para comprar vários envelopes de Paneangeli - Aroma per dolci - Vanillina. O sabor e aroma desta baunilha em pó é infinitamente mais autêntico do que as opções líquidas existentes por aqui. Cada envelope vem com seis porções que são adequadas para receitas de bolos, cremes, pudins e creme chantilly. Isso pode ser interessante até como lembrancinha de viagem para os amigos que curtem novidades culinárias, afinal não ocupa lugar na mala, não pesa, custa pouco e dificilmente se encontra aqui!

sexta-feira, 13 de abril de 2012

DÓ, CHEIRO... ENFIM, UMA DELÍCIA!

Para quem não sabe, na minha infância, se comprava frango (galinha, galo, pintinhos e ovos também) em avícolas. Detalhe: vivos! Amarravam os pés da galinha que era levada pra casa debaixo do braço ou numa sacola de feira, sem que a coitada tivesse noção do destino cruel que a esperava no novo lar.

Em casa, minha nonna colocava um grande balde de alumínio com água para ferver. Isso, por si só, somado à história de Buettino (que qualquer hora conto pra todos), já me deixava no mínimo apreensiva! Mas o pior é que, enquanto a água esquentava, a galinha 'berrava' ao ter seu pescoço esticado até dar o último suspiro. Água fervida, galinha morta mergulhada! Aí, sim, volta muito claramente à memória olfativa: um cheiro horroroso das penas aquecidas abandonando a pobre galinha. Calma! Isso não é uma história de final triste (exceto para a pobrezinha)!

Se minha nonna, na maioria das vezes, era a vilã, meu nonno, era o herói capaz de transformar esse 'terror' numa lembrança de paladar e aroma inesquecíveis. Era ele quem manuseava com extrema delicadeza e habilidade aquela pobre ave para apresentá-la novamente como um prato irrecusável. Dono de uma habilidade única, 'artusiana', ele era capaz de retirar todos os ossos da galinha, sem causar-lhe qualquer dano - seria possível? afinal ela já estava morta!

Esta delicada operação levava um bom tempo. Enquanto isso, as mulheres - minha mãe e minha nonna - preparavam a mistura que iria devolver formas arredondadas e tentadoras à pobre ave desmilinguida. "Recuperada" com um delicioso recheio, ela ia para o forno e então acontecia a festa! Todos em torno da mesa, começando o ritual dominical com uma boa 'pasta al sugo', um bom vinho (misturado com água para as crianças), às vezes a tal ave e uma conversa barulhenta, metade em italiano, metade em português!

Muitas coisas mudam - boas ou não, pra melhor ou pra pior - e hoje talvez não existam tantos nonnos e nonnas, dispostos e habilidosos. Em compensação os frangos e galinhas são comprados mortos, em vários lugares, mesmo que menos saudáveis. E pra facilitar ainda mais, podem ser encontrados já sem seus ossinhos, prontos pra serem recheados. Por isso, vale provar essa receita do meu nonno.

POLLO FARCITO (frango recheado)

1 frango desossado *
2 filés bem finos de peito de frango
Sal, pimenta, folhas de sálvia fresca e alho picado
5 colheres (sopa) de azeite
30 g de manteiga
1 cálice de conhaque

RECHEIO
100 g de carne sem gordura
100 g de carne de porco
½ pão francês amanhecido e amolecido no leite
50 g de linguiça
100 g de presunto cozido cortado em cubinhos
25 g de pistache sem casca
50 g de parmesão ralado
2 ovos
Sal e pimenta

Forrar internamente a parte do peito do frango onde tem menos carne com os 2 filés de frango. Temperar com sal, pimenta e a sálvia e o alho picados. Se temperar na véspera fica ainda mais saboroso. Reservar.
Cortar as carnes em cubos, refogar com azeite e passar por duas vezes no moedor de carne junto com o pão. Juntar os cubos de presunto, os pistaches triturados grosseiramente, a linguiça desmanchada sem a pele, o parmesão e os ovos ligeiramente batidos. Temperar com uma pitada de sal e pimenta. Colocar o recheio no frango, procurando colocar um pouco também nas asas e coxas. Fechar, costurando com linha grossa. Espetar a pele do frango com a agulha grossa.
Colocar para dourar numa panela, em fogo alto, com 30 g de manteiga e 5 colheres (sopa) de azeite.
Assim que estiver dourado, espargir o conhaque pré-aquecido sobre o frango e flambar.
Colocar no forno pré-aquecido e deixar cozinhar por cerca de uma hora e ½, virando de tanto em tanto e juntando uma colher de água sempre que necessário.
Servir cortado em fatias e recomposto como se estivesse inteiro.

* (se alguém preferir se aventurar na técnica de desossar o frango, há uma explicação na página 155 do livro "A ciência na cozinha e a arte de comer bem", de Pellegrino Artusi)

Buon Appetito!