quarta-feira, 28 de março de 2012

A REFERÊNCIA HISTÓRICA DA COZINHA TOSCANA.

Para entender a força que os sabores e aromas da culinária toscana podem imprimir em nossa memória é interessante saber quem foi Pellegrino Artusi. Italiano nascido em 1820. Aos 32 anos mudou-se para Florença e ali descobriu sua paixão pela gastronomia. Em 1891, escreveu "A ciência na cozinha e a arte de comer bem". Recebeu muitas negativas por parte de editores. Decidiu bancar uma primeira e tímida tiragem. O livro, definido pelo autor como um "manual prático", com 790 receitas, acompanhadas por anedotas e curiosidades, acabou por consagrar-se como "a bíblia" da culinária italiana.

E o 'personagem' Artusi também passeou pela minha infância. Cresci ouvindo meu nonno, que entre inúmeras outras habilidades adorava experiências culinárias, e minha mãe, a prova viva de que 'o aprendiz supera o mestre', falando "esta receita é do Artusi", "procure no Artusi como preparar isso", "a receita verdadeira disso ou daquilo é a do Artusi"...

E Artusi, que no século XIX já ousava tratar culinária como arte, não podia encontrar melhor defensor de suas propostas do que o poeta Lorenzo Stecchetti. Em uma carta que escreveu ao amigo Artusi, Stecchetti dá o merecido status àqueles que se dedicam a preparar, criar e saborear uma boa comida. Esta carta - um verdadeiro tratado visionário! - ilustra a 'nota do autor para o leitor' no livro de Artusi. Não resisti em transcrevê-la quase na íntegra:

"O gênero humano perdura somente porque o homem tem o instinto da conservação e da reprodução e sente muito viva a necessidade de satisfazê-los... o prazer da conservação está presente no sentido do paladar e o da reprodução no sentido do tato. Se o homem não desejasse a comida e não sentisse estímulos sexuais, o gênero humano terminaria logo. O paladar e o tato são, portanto, os sentidos mais necessários... Os outros sentidos apenas auxiliam, e pode-se viver cego e surdo, mas jamais sem a atividade funcional dos órgãos do paladar.
Por que, então, na escala dos sentidos, os dois mais necessários à vida e à sua transmissão são os menos considerados? Por que aquilo que satisfaz os outros sentidos, pintura, música etc. é chamado arte, é considerado nobre, e é considerado vulgar aquele que satisfaz o paladar? Por que quem se regozija vendo um belo quadro ou escutando uma bela sinfonia é considerado superior àquele que exulta comendo uma excelente comida?... Deve ser por causa daquele tirânico poder que o cérebro exercita sobre todos os órgãos do corpo...Tudo o que importa são nervos, neuroses, neurastenia, enquanto a altura, a circunferência torácica, a força de resistência e de reprodução diminuem a cada dia nesta raça de sábios e de artistas geniais e raquíticos, cheia de delicadezas e de glândulas, que não se alimenta, mas que se excita e se sustenta por meio do café, do álcool e das drogas. Por isso, os sentidos que se dirigem à celebração são qualificados como mais nobres que aqueles que presidem à conservação, e esta injusta sentença já deveria estar banida.
Ó santa bicicleta que nos faz sentir a alegria de um robusto apetite, a despeito dos decadentes e dos ultrapassados sonhadores da anemia, da degeneração e dos furúnculos da arte ideal!...Não tenhamos vergonha, portanto, de comer o melhor que pudermos e de colocar a gastronomia no seu devido lugar. Por fim, também o tirano cérebro lucrará com isso...
Não se vive só de pão, é verdade; é preciso também um acompanhamento para se comer com o pão; e a arte de torná-lo mais econômico, mais saboroso, mais saudável, eu digo e sustento, é a verdadeira arte. Reabilitemos o sentido do paladar e não nos envergonhemos de satisfazê-lo honestamente, da melhor maneira possível, conforme os preceitos que esta arte nos oferece."

O que mais encanta nessa carta é imaginar a época em que foi escrita, a recusa de publicação em várias editoras, o que, segundo Artusi, "comprova em quais descréditos haviam caído os livros de culinária na Itália!"

Depois de várias tiragens, buscando edições cada vez mais elegantes e corretas, Artusi cobra mais empenho de seu editor afirmando que "com as tendências do século voltadas para o materialismo e para os prazeres mundanos, chegará o dia, e não está longe, em que serão mais procurados e lidos os escritos deste gênero, isto é, daquilo que dá prazer à mente e sustentação ao corpo, em vez de obras de grandes cientistas, muito mais úteis à humanidade".  

No início do novo século, em 1911, quando Artusi morreu, 'A Ciência na cozinha e a arte de comer bem' já era um dos livros mais lidos pelos italianos!