quarta-feira, 27 de junho de 2012

ROMA DE WOODY ALLEN. ROMA DE LUA DE MEL.

Estive na pré-estreia do novo filme de Woody Allen - Para Roma com Amor (aqui, a opção do trailler em italiano) - e as associações foram inevitáveis! Acabei dando uma escapadinha para janeiro de 1980! Viagem de lua de mel...

Entre as histórias acumuladas até aquele ano, já existiam algumas referências que faziam de Roma uma cidade minimamente conhecida e idealizada na minha imaginação. Antes de mais nada, a Capital da Itália. A cidade que curiosamente abriga outra cidade: a Cidade do Vaticano. A cidade que dominou a Europa com seu Império Romano. A cidade que é dona de riquezas de arte e história. A Cidade Eterna. A Cidade Aberta de Rossellini e também a Roma de Fellini. Tanto faz. Afinal foi justamente lá que pisei em solo italiano pela primeira vez! 

Antes mesmo de descer do ônibus, chegando do aeroporto, o primeiro dos muitos ícones do país dos meus pais surgiu inesperadamente na minha frente. O Coliseu. Enorme. Majestoso em suas ruínas. Prova de sobrevivência de uma cultura que conheci nas histórias da minha infância. Como disse uma grande amiga, também filha de imigrantes, porém portugueses, "mesmo antes de estar lá eu já conhecia os cheiros e sabores daquela terra, e isso era muito forte em mim; eram os cheiros e sabores da minha casa!". Emoção total! 

E sendo janeiro - e sendo inverno -, caminhando pela primeira vez pelas ruas de Roma, fui surpreendida com mais uma história que se concretizava ali, ao alcance das minhas mãos e do meu paladar. Um ambulante, um fogareiro e mondine! Castanhas assadas na brasa, que eu conhecia tão bem de histórias dos muitos invernos austeros da infância e juventude dos meus pais. Assadas nas lareiras e fogareiros domésticos, um punhado delas dentro dos bolsos do casaco era, naquele tempo, o melhor modo de aquecer as mãos e encarar, a pé ou de bicicleta, o caminho muito frio até a escola. Poder sentir o que eles sentiram foi uma emoção inesquecível. Tão forte que quase me esqueci de comê-las e dar também sabor a essa experiência, agora lembrança também minha.

E se a Roma de minha lua de mel tem calor e gosto de castanha assada, a verdadeira Roma tem uma receita que sempre frenquenta as nossas mesas (mesmo sendo mesas toscanas!): saltimbocca* alla romana. Simples, fácil e muito saborosa. Façam essa carne. Mas aproveitem o ameno inverno de nossas terras tropicais e provem também as mondine.

Ah! Já ia me esquecendo... Gostei do filme. Um história leve, que mistura romance, críticas e humor. Bem ao estilo Woody Allen. E com um cenário 'meravigloso'!


Mondine

A receita em si é muito simples, mas preparar mondine por aqui tem algumas complicações. Quando temos um pouco de frio, não temos castanhas. O jeito é guardar na geladeira um pacote da época do Natal e torcer pra que elas durem até a temperatura dar a primeira esfriadinha.
Você vai usar uma frigideira bem grande, daquelas baratinhas, porque vai precisar fazer vários furos, com cerca de 0,5 cm, por todo o fundo. É aconselhável também que a frigideira tenha um cabo mais comprido que o normal, para poder segurá-la sobre o fogo o tempo todo, sem se queimar. Além disso, é necessário uma lareira ou uma churrasqueira ou uma fogueira...
Se tudo isso estiver OK, é só fazer um pequeno talho em cada uma das castanhas para que elas não explodam com o calor. Coloque-as na frigideira, dê uma boa esborrifada com vinho tinto e mantenha sobre o fogo, sacudindo sempre a panela, como se fosse virar uma panqueca. Enquanto assam, pode esborrifar com vinho mais uma ou duas vezes. Quando ficarem tostadas, despeje-as sobre um saco de estopa (bem ao estilo dos camponeses italianos) e esfregue bem para ajudar a soltar a casca. Pronto! Pra acompanhar, só falta um bom copo de vinho e um bom papo, aproveitando o calor das brasas. 

Saltimbocca alla romana (para 4 pessoas)

12 pequenos escalopes finos de filé mignon (lá eles usam a vitela)
200 g de presunto crú italiano (a versão mais 'light' da minha casa é feita com peito de peru defumado)
folhas de sálvia fresca
sal, pimenta, farinha de trigo
azeite de oliva e manteiga (não use margarina)

Procure deixar os escalopes de tamanhos iguais, finos e não muito grandes. Tempere com pouco sal, principalmente se usar presunto crú, e pimenta. Coloque uma ou duas folhas de sálvia no centro e cubra com uma fatia de presunto crú, prendendo-a transpassando um palito (em casa, não costumamos colocar mais uma folha de sálvia por cima do presunto). Passe levemente pela farinha de trigo, dos dois lados. Cozinhe numa frigideira com um fundo 'generoso' de manteiga e azeite (meio a meio) quentes, colocando os escalopes lado a lado, em fogo moderado, evitando queimar a manteiga. Deixe ficar um pouco mais de tempo do lado que não tem o presunto. Repita até acabar, acrescentado a cada porção de escapoles um pouco mais de manteiga.  Esse 'fundo' que se forma na panela deve ser despejado sobre os escalopes. 
Alguns receitas, orientam a voltar os escalopes para a panela, juntar um pouco de vinho seco e esperar evaporar. Provei mas não aprovei. O toque de vinho rouba um pouco a cena do delicioso sabor da sálvia com o presunto. 
Detalhe: depois de comer os saltimboccas,  limpar esse molho da travessa com pão, é uma delícia bastante disputada, quando não temos visitas em casa!

Sugestões de acompanhamentos: batatinhas assadas no forno ou purê de batatas ou risoto com zafferano (açafrão italiano).

* saltimbocca é uma corruptela que quer dizer 'salta na boca'

Bem, pra completar, entre saltimbocca e castanhas, 
a lua de mel dessa história continua dando muito certo!

quarta-feira, 13 de junho de 2012

O QUE É TER NONNO!

Avós, pra mim, sempre foram nonno e nonna. Aliás sempre me soou estranho quando precisava me referir a eles como vovô e vovó, avô e avó. Um nonno e uma nonna, por parte de pai, eu só conheci por histórias e fotos, que naquela época eram poucas e só em branco e preto. Nas minhas referências de criança, eles moravam muito, muito longe. Num lugar que só podia ser alcançado por mar, numa viagem de quase duas semanas, ou de avião, mas com pelo menos duas escalas. Esses eram 'i nonni' que moravam em Lucca e nunca vieram para cá. 

Mas a convivência estreita que tive com a nonna e o nonno maternos preencheram minha infância com uma certa - e inesquecível - rotina! Se fecho os olhos, uma sequência sem fim de deliciosos momentos, repletos de aromas, sotaques, melodias e sabores me vêm à lembrança. E nessa 'gaveta' das minhas memórias, o nonno, sem dúvida, ocupa mais espaço do que a nonna. Um nonno que tinha uma paciência sem fim! Um nonno que fazia coisas simples que todo avô deve fazer, como levar os netinhos pra brincar na praça, vez ou outra contar uma história, dar papel e lápis de cor pra desenhar, comprar um doce, ir a uma matinê... Mas com ele, nunca foi assim tão básico, tão comum! 

Meu nonno (por favor, leiam esse 'meu' com total sentimento de posse, como se ele nunca tivesse tido outros netos!) pintava telas à óleo. Apenas um de seus muitos 'hobbies'.  Ele tinha um cavalete - que pra mim parecia muiiiiito alto! - e uma maleta repleta de pincéis e tubos de tintas de muitas e muitas cores. Ali sempre tinha também alguns trapos sujos de pinceladas de tinta, onde eu tentava descobrir formas com a minha imaginação. E o cheiro dessas tintas e pincéis? Ah! Está aqui, muito vivo, no cantinho da minha memória. 

Ele tinha vários livros com obras dos grandes pintores do renascimento. E, com toda sua generosidade, me deixava folhear aqueles pesados volumes, com cenas que às vezes me assustavam, com pessoas sofrendo, trovões e serpentes, e às vezes me enterneciam, com Jesus rodeado por crianças, com jardins repletos de flores.

Meu nonno gostava de música. E foi através de um móvel grande e escuro, com discos pretos e grossos, de 78 rotações, que ele me apresentou a Puccini e Verdi, ou a Achille Togliani, Alberto Rabagliati, Claudio Villa, Beniamino Gigli, Carlo Butti, que davam voz e melodia às suas lembranças da Itália (e agora minhas lembranças de infância). 

Lembro bem das nossas tardes, aproveitando a luz da varanda, 'dividindo' tintas e pincéis, pintando (eu, mesmo sem qualquer habilidade, me achava um Da Vinci!) e escutando música italiana. Lembro da sua paciência ao ter sua pintura interrompida para atender meu pedido e colocar outro disco naquela vitrola que eu não alcançava, nem mesmo ficando na ponta dos pés! 

Meu nonno se chamava Giuseppe (José) e como o 'bom José' também 'mandava muito bem' criando algumas peças em madeira. Lembro bem do pequeno quarto na área de serviço, repleto de ferramentas. E já que minha memória fez esse caminho, passando pelo tanque, lembrei de seu costume de todas as manhãs: frio ou calor, era ali, sob a torneira de água fria, que ele enfiava a cabeça pra despertar para mais um 'buongiorno'! E nisso, confesso, não herdei nada: adoro água quente!

Meu nonno me levava para brincar na praça, nas festas juninas do clube, nas sessões de Tom & Jerry, no Cine Jardim, quase todos os domingos de manhã, me empurrava bem alto no balanço e obviamente me contava histórias. Poderiam ter sido muitas histórias, mas eu explorava sua paciência celestial ao máximo! Quase todas as semanas, antes da frequência obrigatória da escola, eu dormia algumas noites na casa dele. Honestamente? Mais do que na casa dele. Eu desalojava minha nonna da cama deles, me deitava no lugar dela, só para poder dormir escutando ele contar incansáveis inúmeras vezes a mesma história italiana para crianças: "nonno, conta de novo a história do Buettino?". E ele contava!

Meu nonno era habilidoso também na cozinha, onde testava e adaptava receitas do Artusi, como os crostini (hoje generalizados como bruschettas) di fegatini toscani, a torta de chocolate - bem forte - com as amêndoas amargas, tiradas do caroço do pêssego, o frango que ele mesmo desossava com perfeição e recheava.


Mais um sabor que até hoje me leva diretamente ao meu nonno: morangos com chantilly.   Qualquer saída até o centro da cidade incluía uma parada no restaurante da família, gerenciado por ele. Recebida com honras pelos garçons, em horário de folga no meio da tarde, eu, muito magrela, era servida com uma farta porção de morangos com chantilly! Essa combinação era uma sobremesa especial naqueles tempos, em que os morangos obedeciam a sazonalidade da natureza, duravam muito pouco e o seu aparecimento estava diretamente associado à época do meu aniversário, no mês de julho.

Meu nonno cumpria comigo um outro importante ritual: a montagem do presépio. Lógico que, com um nonno tão habilidoso, o nosso presépio tinha alguns encantos especiais. O móvel, chamado de buffet, na sala de jantar, ganhava uma tela de fundo, em toda sua extensão, com cenas e paisagens de Jerusalém pintadas por ele. Algumas montanhas eram 'construídas' com papel que imitava pedra. Um lago, feito por ele, ganhava água de verdade para os patinhos de mentira se instalarem. E os pequenos personagens de gesso podiam cruzar esse lago passando por uma ponte de madeira, também construída por ele, e seguir por estreitos caminhos feitos com serragem, até alcançar o pequeno estábulo com teto de palha e manjedoura. Também obra dele! E então chegava um momento de muita concentração e cuidado: ele acompanhava a minha colocação de todos os personagens nesse fantástico cenário, mas que deviam ficar concentrados no lado oposto do estábulo. Depois disso, o encantamento do 'gran finale': ele me ajudava, em pé sobre uma cadeira, a alcançar um fio de nylon, estendido no alto da paisagem, que recebia a dourada estrela que guiaria todos os personagens! E até o dia de Reis, eu era a importante guardiã dessa obra, encarregada de movimentar, pouco a pouco, pastores, camponeses, animais e Reis Magos para que todos chegassem até a manjedoura no dia de Natal, quando eu colocava ali também o Menino Jesus.


Meu nonno não está mais aqui, mas ainda tenho o mesmo São José acompanhado da mesma Maria e Reis Magos do nosso presépio. Meu nonno não está mais aqui, mas garanto que até a nossa despedida não foi comum. Ele já estava doente, hospitalizado no interior de São Paulo, e o destino quis que eu estivesse no Rio Grande do Sul exatamente no dia em que ele faleceu. Por isso, nosso arrivederci não aconteceu entre hospitais, velórios ou enterros. Esse momento triste também tinha que ser transformado numa lembrança especial! Nosso arrivederci foi no voo que imediatamente tomei para São Paulo, com o dia amanhecendo, sobre nuvens fofas e brancas, atravessando um céu muito azul, do jeitinho que ele teria pintado. E onde sei que ele está, olhando por nós (e especialmente por mim)!


Bem, apesar deste post ter ficado mais longo, acho que mesmo assim devo publicar aqui mais uma das receitas do meu nonno. E pra ser algo especial, escolhi a única que ainda temos anotada com a caligrafia dele.


Torta de amêndoas e chocolate (*)


150 g de amêndoas (se quiser, prove fazer juntando amêndoas do caroço do pêssego)
150 g de açúcar
100 g de chocolate amargo 
60 g de fécula de batata
50 g de manteiga (não usar margarina)
1 e 1/2  xícara (chá) de leite (300 ml)
4 ovos
essência de baunilha


Se optar pelas amêndoas do pêssego, que dão um toque mais amargo, elas devem ser retiradas de dentro do caroço e deixadas secar muito bem ao sol ou no forno, antes de usar.
Devem ser trituradas até ficarem bem finas, junto com 1/3 do açúcar.
Numa panela, derreter a manteiga, juntar a farinha de batata e ir incorporando o leite pouco a pouco. Quando tomar consistência, mexendo sempre, juntar o chocolate ralado e o restante do açúcar. Quando estes estiverem incorporados, juntar as amêndoas trituradas, mexendo continuamente.  Quando o creme estiver bem uniforme, juntar a essência de baunilha (ver a dica no final do post 'Ganhando fama por gerações"). Deixe esfriar para juntar os ovos batidos à parte.


Preparar a massa da torta com 250 g de farinha de trigo, 125 g de manteiga em temperatura ambiente, cortada em pedaços pequenos, 110 g de açúcar, 1 ovo inteiro e 1 gema, 1 colher (café) de raspas de casca de  laranja. Misturar tudo, trabalhando apenas o necessário para a massa ficar bem homogênea. Envolver a bola de massa em filme plástico e colocar na geladeira por meia hora. Depois, abrir a massa formando um disco com no máximo 0,5 cm de espessura. Untar uma forma redonda com fundo removível e forrar o fundo e lateral com a massa. 


Despejar o creme anteriormente preparado e levar ao forno médio até que a borda da massa esteja dourada. 


(*) Curiosidade: acabo de descobrir que o recheio desta torta é exatamente a receita nº 646 do livro de Pellegrino Artusi, fonte inspiradora das experiências culinárias do meu nonno. Tão aprovada por ele, que até a copiou em seu caderno, esta receita está curiosamente apresentada por Artusi como "para quem gosta de chocolate, este, se não me engano, é um bolo excelente"! Pois é! Acho que Artusi não se enganou!